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Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Santo de Pedra

Ao olhar aquela pedra, naquele rio, naquela floresta, Santo percebeu o mundo. Era como se encontrasse uma pista do que era, de fato, verdade. Pescou seus peixes, colocou-os dentro da sacola e voltou para sua vila. A noite, os peixes eram assados na fogueira, e alguém contava uma história sobre como surgiu a ponte-de-árvore. O homem-que-sonhava queria visitar os quatro cantos da terra. Para isso orou a Deus-sol todos os dias durante 20 anos. Deus-sol se cansou de tanto escutar as orações do homem-que-sonhava, e resolveu descansar, bem na hora em que o sol caía. Assim o sol parou no horizonte, e o Deus-sol descansou, durante 20 anos. As árvores o procuraram, e percebendo seu vestígio, longe, tentaram alcançá-lo, curvando-se assim, sobre o rio que cortava a vila. Homem-que-sonhava largou sua família e foi embora, deixando apenas a ponte-de-árvore para trás. E nunca mais voltou.
Santo, ao deitar, chorou até dormir. Será que essa história era verdade? Precisava ver.
Ao amanhecer, foram feitas as tradições, e os colhedores foram colher, pescadores foram pescar, curandeiros saíram para procurar suas ervas e o homem-da-história sentava ao centro da vila, observando a vida e ensinando os filhos-da-história. Um de seus filhos, seria, um dia, homem-da-história. Os outros atravessariam a ponte-de-árvore, deixando tudo para trás.
Santo perguntou ao seu pai o porquê do homem-da-história nada fazer além de sentar, observar e ensinar. Aprendeu, assim, que esse não era só um homem. Era também ocupado por todos os outros que o antecederam. O homem que, a noite, contava as histórias, era um homem de mil espíritos e quando morresse, os espíritos iriam habitar em uma de suas crias. Ao pescar, Santo encontrou-se de novo com aquela pedra. Observou-a meticulosamente. Ela tocava as águas anteriores e assim elas se tornavam águas posteriores. Santo não se sentia dessa forma. Mas continuou a olhar a pedra.
No fim do dia, a vila se ajuntou para ouvir o homem de mil espíritos. Mas nenhuma história foi contada aquela noite. O homem-da-história recebeu uma visão de que o espírito de uma pedra agora habitava em alguém. As pedras habitavam os homens menores, segundo a história. Esses homens não deviam falar nem deviam ser ouvidos, porque seus espíritos não falavam nem ouviam. Ao olhar um a um, viu a pedra nos olhos de Santo. Ele agora era Santo de Pedra. Ele nada reclamou. Voltou a sua casa, só. Seu pai não olhou para ele, sua mãe não lhe trouxe o chá de sonhos.
Santo de Pedra, ao deitar, não chorou e não dormiu. Levantou-se de madrugada e cruzou a ponte-de-árvore. Andou em linha reta, durante 40 dias, até encontrar uma outra vila. As pessoas tinham a cor diferente. As roupas eram diferentes. E nenhum rio cortava aquela vila. Ao entrar, viu um homem sentado ao centro, observando e ensinando. Ele olhou e chamou Santo.
- Quem você é?
- Era Santo. Agora sou Santo de Pedra.
- Posso ver em seus olhos. Eu sou Mar, sou o orante desta vila.
- O que é orante?
- É um homem que se dedica a olhar para dentro de si. E aqui, ajudo a todos a fazerem o mesmo. Ensino esses pequenos para que um dia possam ensinar também.
- Eu procuro um homem. Homem-que-sonhava.
- Sei. Passou por aqui há muito tempo atrás. Disse que queria ver o mundo inteiro. Andou até onde o sol se põe, o final da terra, e caiu no vazio.
Santo assustou-se. Sentia-se parte do espírito do homem-que-sonhava.
- Você é bem vindo aqui. Posso te ensinar a ser como eu.
Santo de Pedra não percebeu, mas acabou ficando. E muitos anos depois, sentava-se naquela cadeira em que Mar se sentava quando o viu a primeira vez. Ao fazer as tradições, naquela manhã, algo diferente aconteceu. Santo fechou os olhos e notou os rios dentro de si. E, ao olhar aquela pedra, naquele rio, na floresta que era seu peito, Santo encontrou uma carta. "Santo, sou eu. Andei, andei e não vi o fim da terra. A terra não tem fim. Mas você, amigo, viu de tudo."
Até o final de sua vida, Santo foi Mar. Muitos outros Mares nasceram dele. Sentado naquela vila, neste mundo, todos os povos passaram por ali. Todos sentavam, comiam e faziam as tradições com ele.
E ao morrer, Santo tocou as águas passadas e nelas ficou no futuro, até o desaguar.