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Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Santo de Pedra

Ao olhar aquela pedra, naquele rio, naquela floresta, Santo percebeu o mundo. Era como se encontrasse uma pista do que era, de fato, verdade. Pescou seus peixes, colocou-os dentro da sacola e voltou para sua vila. A noite, os peixes eram assados na fogueira, e alguém contava uma história sobre como surgiu a ponte-de-árvore. O homem-que-sonhava queria visitar os quatro cantos da terra. Para isso orou a Deus-sol todos os dias durante 20 anos. Deus-sol se cansou de tanto escutar as orações do homem-que-sonhava, e resolveu descansar, bem na hora em que o sol caía. Assim o sol parou no horizonte, e o Deus-sol descansou, durante 20 anos. As árvores o procuraram, e percebendo seu vestígio, longe, tentaram alcançá-lo, curvando-se assim, sobre o rio que cortava a vila. Homem-que-sonhava largou sua família e foi embora, deixando apenas a ponte-de-árvore para trás. E nunca mais voltou.
Santo, ao deitar, chorou até dormir. Será que essa história era verdade? Precisava ver.
Ao amanhecer, foram feitas as tradições, e os colhedores foram colher, pescadores foram pescar, curandeiros saíram para procurar suas ervas e o homem-da-história sentava ao centro da vila, observando a vida e ensinando os filhos-da-história. Um de seus filhos, seria, um dia, homem-da-história. Os outros atravessariam a ponte-de-árvore, deixando tudo para trás.
Santo perguntou ao seu pai o porquê do homem-da-história nada fazer além de sentar, observar e ensinar. Aprendeu, assim, que esse não era só um homem. Era também ocupado por todos os outros que o antecederam. O homem que, a noite, contava as histórias, era um homem de mil espíritos e quando morresse, os espíritos iriam habitar em uma de suas crias. Ao pescar, Santo encontrou-se de novo com aquela pedra. Observou-a meticulosamente. Ela tocava as águas anteriores e assim elas se tornavam águas posteriores. Santo não se sentia dessa forma. Mas continuou a olhar a pedra.
No fim do dia, a vila se ajuntou para ouvir o homem de mil espíritos. Mas nenhuma história foi contada aquela noite. O homem-da-história recebeu uma visão de que o espírito de uma pedra agora habitava em alguém. As pedras habitavam os homens menores, segundo a história. Esses homens não deviam falar nem deviam ser ouvidos, porque seus espíritos não falavam nem ouviam. Ao olhar um a um, viu a pedra nos olhos de Santo. Ele agora era Santo de Pedra. Ele nada reclamou. Voltou a sua casa, só. Seu pai não olhou para ele, sua mãe não lhe trouxe o chá de sonhos.
Santo de Pedra, ao deitar, não chorou e não dormiu. Levantou-se de madrugada e cruzou a ponte-de-árvore. Andou em linha reta, durante 40 dias, até encontrar uma outra vila. As pessoas tinham a cor diferente. As roupas eram diferentes. E nenhum rio cortava aquela vila. Ao entrar, viu um homem sentado ao centro, observando e ensinando. Ele olhou e chamou Santo.
- Quem você é?
- Era Santo. Agora sou Santo de Pedra.
- Posso ver em seus olhos. Eu sou Mar, sou o orante desta vila.
- O que é orante?
- É um homem que se dedica a olhar para dentro de si. E aqui, ajudo a todos a fazerem o mesmo. Ensino esses pequenos para que um dia possam ensinar também.
- Eu procuro um homem. Homem-que-sonhava.
- Sei. Passou por aqui há muito tempo atrás. Disse que queria ver o mundo inteiro. Andou até onde o sol se põe, o final da terra, e caiu no vazio.
Santo assustou-se. Sentia-se parte do espírito do homem-que-sonhava.
- Você é bem vindo aqui. Posso te ensinar a ser como eu.
Santo de Pedra não percebeu, mas acabou ficando. E muitos anos depois, sentava-se naquela cadeira em que Mar se sentava quando o viu a primeira vez. Ao fazer as tradições, naquela manhã, algo diferente aconteceu. Santo fechou os olhos e notou os rios dentro de si. E, ao olhar aquela pedra, naquele rio, na floresta que era seu peito, Santo encontrou uma carta. "Santo, sou eu. Andei, andei e não vi o fim da terra. A terra não tem fim. Mas você, amigo, viu de tudo."
Até o final de sua vida, Santo foi Mar. Muitos outros Mares nasceram dele. Sentado naquela vila, neste mundo, todos os povos passaram por ali. Todos sentavam, comiam e faziam as tradições com ele.
E ao morrer, Santo tocou as águas passadas e nelas ficou no futuro, até o desaguar.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Sorri

Eram muitos nomes. Muitas luzes. Cores. As coisas faziam sentido demais.

Uma perseguição policial, car chase, depois um corre corre pelos topos de prédios em uma favela sul-americana... o polícia perde o chão.

Literalmente
Agora o que era chão não existia mais. O polícia só flutuava diante daquela coisa que não sabia o que era.

Ele atira no pé. Põe a pistola na boca. Não havia resposta para o que era o que os seus pés pisavam.

- Pense você, numa coisa que não existe - disse polícia

- Eu não tenho coragem de dar nome a bois - respondi, diante da tela.
Como que o polícia falou com a pistola na boca?

O sangue do pé do polícia corria pelo

A torcida se dividia. Uns diziam:

A) QUE MERDA DE FILME É ESSE?

B) SE MATA LOGO, SEU MERDA!

Um mais esclarecido levantou uma dúvida:
C) SE ELE SE MATAR, ONDE SERÁ ENTERRADO?!

Um entendeu tudo:
D) EXCELENTE, EXCELENTE!!

Um coroa entendeu de verdade:
E) POLÍCIA, SEU POLÍCIA!

- Fala coroa! - disse polícia

- Chama de solo! - disse o coroa, que era geólogo formado.

Solo se materializou.

O sangue do pé do polícia corria pelo solo.

O esclarecido sanou sua dúvida. Os sedentos de sangue ficaram frustrados. Os exaltados se acalmaram. O que entendeu acha o diretor overrated. O coroa teve um infarto fulminante.

e eu, diante das cores, das luzes, dos nomes,
sorri.





quarta-feira, 23 de setembro de 2015

moeda

o homem que escreve um poema e o dá é como a mulher que tira sua última moeda do bolso para entregar ao necessitado. mas o senso de justiça de um homem poeta é suficiente para torna-lo amargo ao ver que o mundo não o recebeu bem. sucedem-se sonhos, lembranças, e o seu corpo toma as dores.

ontem a noite sonhei que era poeta, e como quem entrega tudo o que tem, cantei: houve um dia uma mulher que deu tudo o que tinha. Mas canto não enche prato, moedas compram comida. e eu, poeta, no sonho, acordei quando a fome ardia.

o homem que escreve um poema precisa de que uma mulher dê sua última moeda a ele. caso contrário, morre amargo, de fome.

sábado, 13 de junho de 2015

o beijo

o beijo voltou.
já era a terceira mulher diferente, mas a mesma, mesmíssima sensação. o peito pegando fogo, os pelos do braço percebendo a estranheza: amor
ali se sentiu completo. valido. válido.
beijou de volta, amou, transou.
e ao olhar o rosto dela se desfez... a sensação já não era mais a mesma, o lugar era estranho, fumacento, etéreo.
acordou meio desesperado pra anotar o que havia sonhado antes que lhe fugisse a mente: já era a quinta vez que esse beijo o tinha atormentado de noite.
no suor e no conhecimento turvo da madrugada mal dormida, impressões vagas de locais, rostos, mas a certeza das identidades, dos desejos e sensações.
estava tão fundo dentro de si.

a vida lhe proporcionara a mais clássica das necessidades, a mais vulgar das carências, a qual não se sacia, apenas se vive: a vontade de ser amado.

mal sabia que o amor é um monstrengo estranho. quanto mais tem, mais quer. nunca se basta, sempre se usa alguém.

o beijo voltou.
a sensação. a completude. os pelos. o peito. o corpo.
se sentiu.
e ao olhar nada se desfez... mas acordou, frente ao espelho. nu. só. com a boca no vidro.

sonâmbulo, nada anotou. o beijo ficou.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Bolso

Pôs a mão no bolso. Havia algo ali. Mas era quase-líquido, de sorte que se tentasse, não segurava. Tentou. Não segurou. Aí o desespero se fez corpo, receptáculo da coisa que, liqueforme, agora era desespero também.

Ah, quando não possuimos o saber estamos diante do juízo final. E estamos condenados, certamente.
Afinal, o que era aquilo no bolso? Tomara que não fosse nada.

Tomara que não fosse ele mesmo.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Nonada

Achei no chão do meu quintal,
no roçado,
uma página de uma coisa complicada
dificil de filosofia.

Homem-burro que sou,
só sei plantar,
Cavei o chão, pus ela lá.
Dois anos depois, acredite só, nasceu um pé-de-livro!

Aí tomei, e comi, me fartei.
Afinal, o que mais fazer com o fruto de saber,
se nem abêcê aprendi?
Só sei plantar e comer.

E ela encheu meu bucho.
E sobrou pro zé, pra antônia,
sem contar os pivete que pulavam o cerco
pra roubar tal de fucô, tal de chope.

Veio um velho metido,
disse que era pra ler, aprender,
crescer como indivído.
Que não devia comer livro.

Ah, que fazer com um fruto desse
que plantando dá aqui,
se não tomar, comer, me fartar?
Só sei isso. Não sei de nada.

domingo, 26 de outubro de 2014

Sou

Aquela árvore rosa
japonesa
que eu não lembro o nome

sábado, 25 de outubro de 2014

Será

Tanta coisa trouxe a gente aqui
E cada uma veio de um lugar
É como se todos os ventos
Se juntassem onde a gente está

E ninguém pode dizer
Nem mesmo saber, pra onde apontar
Das minhas falhas não sou eu quem cuido
A mim cabe querer andar

No fim do dia, todo mundo mora
No olho do furacão
E acha que pode explicar
Escrever o que diz
Numa tábua qualquer

Aceitar que não dá, talvez
Seja a melhor opção
Vai doer não ser dono de si
Mas vai passar.

quando a luz bate atras de você
não ha detalhe, não.
uma massa escura.

foi quando o sol se pôs em você
e não me entenda mal,
eu queria o dia pra mim. 

e eu fico parecendo cristo,
porque dói
mas na verdade 
não há marcas nas minhas mãos.
e foi ele mesmo quem pediu 
pra eu não me martirizar
ou será que ele pediu?





terça-feira, 21 de outubro de 2014

A culpa é do Batman

- Caô.
- Juro. Tô te gastando não, cara.
- É sacanagem, não é possível.

Entenda, aqui, que as discussões de bar em algum microcosmo do Rio começam, em maioria, sempre assim. Terminam no trigésimo casco, com alguém voltando pra casa de busão e percebendo só no dia seguinte que roubou o copo americano.
Mas discutir e/ou revelar é o que move uma mesa que antes estava quieta.

- Aê, esse aqui é o Gil. Gil, Fábio, Fábio, Gil.
- Colé.
- E aí man.
- Mas diz aê Bin, viu o fluzão doutrinar ontem?

O amigo em comum chamava-se Bin. Não me pergunte porquê, mas alguém um dia chamou ele de Bin, e aí a coisa se institucionalizou. Ninguém sabia o nome dele até adicionar na internet: Ricardo Gomes (Bin).
Bin era o PMDB das amizades. Jogava pros dois lados, sempre, nunca polêmico, nunca muito agressivo - tinha medo de que o pessoal não gostasse dele. Sabia de tudo um pouco, mas nada muito.

- Vi, rapaz. Jogaram bem, né? E o Fred!
- Fred jogou mal pra cacete.
- É.

Quem sabe vai entender que, lá pra sexta garrafa, dá vontade de mijar. E aí já era, geral levanta, mija, volta, come uma isca de peixe, molha no rosê, dá um gole, levanta, mija de novo... Gil, até agora quieto, meio excluído, foi no banheiro. O banheiro era espelhado dos dois lados da cabine do mictório, estreito o suficiente pra ele ver pelo menos umas dez cópias dele mijando ao mesmo tempo. Deu aquela angulada no corpo, apoiou uma mão na parede...

- Esse teu amigo aí hein cara? Não fala nada.
- Ele é gente fina, man. Só é meio tímido.
- Que merda hein. - Deu uma risada alta e um tapa nas costas de Bin, puxou sua cabeça contra o peito dele.
- Acontece. - Bin não tava muito feliz ali, tava rolando uma pizza debaixo do ombro de Fábio, perto do cavalo da blusa dele.

Gil chegou, sentou. Era meio tímido mesmo, tava difícil falar alguma coisa. Parecia que fábio ocupava as quatro cadeiras da mesinha. Pediu gurjão de peixe. Até aí tudo bem. Estranhou Bin comendo aquilo ali meio forçado. Olhou a menina que passou, acendeu um cigarro. Era a vez de Bin ir no banheiro. Na cabine apertada, Bin tava tão distraído que nem percebeu suas cópias. Lá fora começou a passar um MMA na tevê, era a luta do Mick The Brick contra o brasileiro Júlio Pedra. A porrada cantou.

- Boa, Júlio. - Disse Gil quando o lutador acertou uma na cara do Brick.
- Sou fã desse cara!! Luta demais. Muito rápido.
- Estudei com ele no 2o ano. A gente se fala até hoje no Whatsapp.
- Caô.

Assim a coisa desenvolveu pra Gil e Fábio, num momento pequeno em que Bin tava lá aliviando, e depois parou pra conversar com um amigo que tava passando na rua. Não conseguia ignorar, e o cara falava pra cacete. A conversa dos que estavam sentados foi indo, passou pelas meninas que passavam no bairro pra quem vota em quem, e depois fluiu pra histórias de época de escola, essas lendas de botar ki-suco na caixa d'água e todo mundo beber suco de uva durante uma semana... Chegou no filme do Batman que tava no cinema. Que filme merda. O Batman tinha mamilos na armadura.

- Nossa man, ridículo demais! Aquela parte da luta. Dá pra ver claramente que é falso. - Fábio gostava de filme de ação.
- E o roteiro! Ridículo cara. - Nesse momento Bin veio chegando.
- Aí Bin, e aquele filme escroto do Batman de mamilos?

Taí uma coisa que Fábio não sabia, mas Gil sim: Bin era fã do Batman. Mas muito fã mesmo. Seu lençol era do Batman. Seu protetor de tela do celular, sua capa do facebook, até o caderno da faculdade era do Batman. Esse fanatismo era porque seu pai, falecido há muito tempo de câncer, se vestia de Batman todo Natal pra entregar os presentes. Essa tradição era tão lógica quanto o apelido de Bin.

- Vai a merda, Fábio.
- UOOOOU
- Que isso, cara?
- Ele é fã do Batman, man! Cê não tava ligado não?
- Caô.
- Sério.
- Hahahaha que escroto Bin, tu é fã do que no Batman? Do peitinho dele?
- Tu ta me gastando assim, mas fica passando noite acordado jogando Lol, coisa de virjão! De merda.

Aí. Ferida exposta dos dois lados. De um lado, um RPG online cuja comunidade ia de gente esquisita até gente esquisita. Do outro, uma comemoração natalina bastante peculiar. Bin xingou os dois e saiu bolado. Fábio ficou meio sem graça, afinal, não era nem um CS, era Lol.

No trigésimo casco, Fábio pagou uma parte generosa da conta, e foi embora de taxi. Naquela noite não teve aventura virtual. Gil pegou um ônibus mesmo. Ligou pra uma menina que ele tava afim. Bin chegou em casa andando, morava perto. Acordou no outro dia com uma certa dor de cabeça, percebeu o copo na sua pia. Ele tinha um amigo a menos. Culpa do Batman.



domingo, 19 de outubro de 2014

Tremeluzir

As mágoas do saber são rubras.
Bom tempo pra estar na beira de um lago
E se ver.

Dura é a imagem espelhada.
É esquecer a lágrima,
Jogá-la ali
Pra deixar de ser
Virar lago,
Tremer quem sou
(Ou quem penso ser)

Manchar aos poucos a água
Com a minha própria consciência.
Gotas de sangue num plasma,
Luz que incide por trás,
Revela a noite em si:
As mágoas do saber são rubras.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Só eu falo

O despertador tocou as 6, religiosamente.
Zé levantou, jogou uma agua no rosto, resmungou alguns palavrões na sua cabeça e pegou um molho de chaves que faria qualquer um ter uma crise de ansiedade, de tão grande. Ele não. Já era zelador há uns 10 bons anos, tinha gente que nem sabia que era tanto tempo, tinha gente que nem sabia. Agarrou um pedaço de pão e subiu as escadas que davam a vista de um pátio vazio, de uma rua vazia. Era domingo de manhã.
Enfiou a chave no buraco da porta do templo maior. Não era aquela. Enfiou a outra e aí acertou.
Quando as duas portas se abriram, a luz que entrava pelo lado de fora invadiu o templo e transformou Zé numa sombra. Mas se ele agora não era visto, podia ver o que tinha lá dentro. Era gigantesco. Quem tinha posto aquilo lá? Uma escultura gigante, ia do tapete vermelho até perto do teto.
Ligou pro pastor.
- Pastor, acho que alguém sacaneou nossa igreja.
- Olha a língua, irmão.
- Não tem outra palavra não, seu Pastor. Sacanearam. Uma tragédia, uma coisa muito séria mesmo.
- Irmão, olha a sua boca. Vigia ela. Enquanto você não falar direito, não vou te ouvir.
- Tem uma pir...
- A BOCA!
- Tem um pênis gigante no meio da igreja, Pastor.

A dita cuja era de plástico, gigante, e ninguém fazia ideia de onde vinha, quem tinha posto ali. As senhoras ficaram escandalizadas e logo colocaram a culpa em alguém da juventude. A juventude achou engraçado. Tirando alguns que, na noite anterior, tinham tido sonhos eróticos.
Os senhores logo foram investigar. Olharam as gravações das câmeras de segurança, minuto por minuto da noite anterior. Não havia sinal de movimento ali. A igreja não tinha sido nem observada de longe, por alguém do outro lado da rua. Conclusão: obra do Capiroto.
Um grupo se uniu no templo para orar, pedindo que aquilo sumisse. Tinha sido posto ali para causar confusão. Fechavam o olho e oravam, oravam... quando abriam os olhos cheios de fé que ia sumir... estava ela lá de novo.

Uma irmã virou pra outra e disse:
- Tinha que ser no Brasil. Esse povo é muito preocupado com a aparência, muito preocupado com o outro. Esses marginais que puseram isso aqui se incomodam conosco.
- É mesmo. Li ontem na revista que o Brasil é o país com o maior índice de promiscuidade no mundo.

O Pastor tentou acalmar todo mundo e levou todo mundo pra fora.
- Isso é claramente obra do maligno irmãos, uma coisa dessas só pode ser para causar confusão!
- (O SENHOR PASTOR TEM UM DESSE NO MEIO DAS PERNAS!)
A igreja toda tomou um susto. Ninguém sabia que o pastor tinha pênis. Pênis... Pênis... O Pastor? A juventude riu.
- Quem foi que falou isso? Quem é o irmão que se levanta contra mim? Quem é que atenta contra o escolhido de Deus?
O silêncio imperou no pátio da igreja.

No domingo seguinte o Pastor resolveu tomar medidas drásticas. Como o obelisco ainda não tinha sumido, eles iam encarar o diabo de frente e fazer o culto diante daquilo ali. E o tema ia ser sexualidade. Separou os jovens porque eles iriam ter uma lição especial com o líder da juventude. Nesse dia a igreja estava cheia.

- Irmãos, isso é um sinal da promiscuidade que domina o mundo!! Nós não podemos nos misturar com essas pessoas promíscuas! Mas temos que amá-las.
A igreja não entendeu bem mas deixou o pastor falar. Só ele tinha microfone. O pênis observava tudo, imóvel.
Na reunião da juventude, o líder explicou que, caso o pessoal não casasse virgem, Deus não ia abençoar o namoro. Alguns ficaram assustados, mas guardaram pra si. O culto acabou, as pessoas voltaram para as suas casas.
Durante a semana o telefone do pastor não parava de tocar.
- Pastor, tem um p...p...pênis na minha sala.
- Pastor, tem um pênis no meu banheiro.
- Pastor, no meu quarto.
- No meu escritório do trabalho, Pastor.
- No banco do meu carro. Quase sentei nele.
- No livro que estou lendo, Pastor.
- NA MINHA CUECA PASTOR!!

No fim das contas as pessoas só se assustavam com os pênis que apareciam. Alguns até falavam de chuva de pênis, "vi essa semana um filme que chovia sapo, agora chove pênis."
E Zé deitava na sua cama todos os dias, fazia amor com sua mulher, as vezes não fazia, as vezes ela tinha dor de cabeça e tudo o mais.
E dormia.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Guardava comigo aos 65, como segredo de pecado, os meus escritos. Eram pequenos contos, que havia elaborado durante todo aquele ano, o primeiro de minha aposentadoria. O que predomina, no peito, é a vontade de ser criança. É sempre invertida, a vontade. Quando sou velho quero ser criança, quando sou criança quero ser adulto, quando sou adulto quero logo ser velho. A vontade não nos permite relaxar nem no leito de morte. É o querer-quebrar, o ir além, andar, retroceder, evoluir, amar... a vontade.

Dentro de um baú azul e pequeno guardei grandes histórias e poemas. Haviam mais de 140 deles. Enredos mirabolantes, fantásticos, histórias de morte, de vida, de fim e de início.

Como pude me esquecer das pessoas que amo? Como sou tão egoísta?
Sempre me faço as mesmas perguntas.
Sempre.

e não há poema, conto, arma que resolva. Isso me dilui. A vida me dilui em matéria-adubo.

Morri hoje.

O Argumentador

Ele era até civilizado pra um homem que carregava uma pistola. A terra girava devagar naquele dia. As matizes de terra vermelha e o azul do horizonte eram uma projeção daquela cidade. No sobrado em que os homens iam para exercer seus convívios e abusos, ele ia encontrar uma moça em especial. Ouvindo só o burburinho lá de baixo, talvez um pouco do cheiro de bebida, talvez um ar espesso de cigarro, ele se encontrava recolhido, sentado à cama ao lado de Darla. Suas feições eram angulares, a sua barba longa e o cabelo caia um pouco na cara, escondendo uma cicatriz de bala na testa, que levara de raspão em uma dessas aventuras. Na cintura carregava uma pistola prateada, com detalhes dourados no bastão, e ao longo do cano. Do outro lado em um cantil trazia aguardente, no corpo um cinto de balas, uma espingarda que carregava nas costas mas que, no fim das contas, usou pouco ao longo da vida.
Gostava mesmo era de discutir, e por ali era conhecido como "O Argumentador". Rezava a lenda que ele já tinha convencido um maquinista a entregar um trem cheio de ouro voluntariamente. Falava como quem sabia o que queria, e dizia o que pensava do mundo, do sistema, de como era deturpado aquele lugar. Era ladrão por ideologia. Caminhava sozinho porque ninguém aguentava-se de orgulho perto dele.
- Me abrace, querida Darla.
Era a única que gostava dele. Mas Darla não contava, afinal, não amava a si, fazia isso muito porcamente. Ele a convencera de que era uma sorte de messias do amor, e ela nunca cobrou seus serviços quando ele passava por lá. Os momentos eram sempre loucos para ela. Para ele, um pouco de vida a mais, um pouco de vida a menos.
- Me conte uma história antes de deitarmos de vez...

E ele pouco sabia sobre histórias. Se lembrou de um homem com quem discutiu e que deixou tão sem argumentos que o homem sacou a pistola, e ele teve que torná-lo um homem outra vez. Um dos poucos abates que sua pistola fizera ao longo dos anos...
Foi dormir pensando em quão felizes eram os homens das armas e seus bandos.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

quando o mundo se abre em flor

guardo tanta coisa no meu peito
no meu corpo
que ou amo
ou morro

e conheço tanto pouco jeito
só meu corpo
que se amo
corro

risco de morrer

sábado, 10 de agosto de 2013

Thélos

Tomar uma caneca de café. É tudo o que eu queria. Na verdade nem tudo, porque gostaria de tomar um café ao lado dela, enquanto o sol batia na janela, e translúcido, chegava ao rosto e deixava mais clara a fumaça que saia da caneca quente. Daí seria perfeito, não fosse eu ter estragado todo o meu relacionamento e agora estar aqui, sozinho. Não me lembro há quantos dias não tomo banho e estou com esse mesmo moletom velho que ganhou um novo rasgado. E talvez tenha perdido um pouco mais da cor. Vejo que a vida é assim - empenhamos a nossa força pra desbotar e envelhecer. Não há razão em amar. O som que a tampa do meu pote de café faz é único, plástico no vidro, arranhando, duro e difícil de abrir. A parte pior do processo, talvez, seja tirar o café de lá: a boca do pote é menor que o meu pulso, e a colher, curta demais pra se encher facilmente. Então eu abro o pote, cujo barulho me dá nos nervos, e fico tentando achar um meio termo, um jeito de acoplar o meu pulso e encher a colher de café. Por em um coador de meia que está com aparência de molhado, dormiu na geladeira. Em dormir, não durmo há alguns dias, também. E o gosto do café é algo que eu preciso ter, não pra dormir, puramente, mas pra acordar. Pra vida. Afinal, tenho trabalho e tinha amigos. Ela me roubou o espaço, preencheu todos os meus cantos. Vi a minha própria imagem ao olhar a leiteira onde esquento a água que já dava sinais de ebulição. Pus a meia na boca da garrafa térmica, derramei a água cuidadosamente... e do outro lado saiu café. Um milagre digno de um Cristo, diga-se de passagem. Ao fim do processo, enfiei uma colher na meia e torci pra que o café saísse até a última gota. Até a última. Gota. A gota d'água foi quando ela fez um escândalo porque conversava com uma outra moça que havia conhecido um outro dia. Ela disse que eu traí ela. Acabou. Ridículo.

Derramei meu café na caneca vermelha e dei um gole. Eu havia mudado da água pro vinho.