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Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Hugo chorou

Ele chorou quando viu Scottie vestindo sua namorada como Madeleine. Chorou quando ela morreu. Chorou quando o filme acabou, sem mais nem menos. Na verdade, chorou quando ligou a tevê. Hitchcock era mais drama que qualquer outra coisa, pra ele. Lembrou de quando tentou vestir Luisa como quis. Lembrou dos traços que a deu: com o simples olhar diminuiu seu nariz, afinou o quadril. Vestiu-a com um vestido longo em forma de presente. Amou-a como a nunca outra qualquer, pois era sua criação. Talvez seja por isso que Deus, na sua magnitude, nos ama tanto: somos molde dele. Luisa não, não era molde de Deus, não mais. Era molde de Hugo. E ao finalizar a sua obra, ele chorou. Chorava agora por não ter mais a quem vestir, como o detetive do filme.

Hugo era sensível, tamanha a sua brutalidade. Como se um gigante carregasse uma margarida em seu paletó. Ele não chorava sempre porque estava triste, mas sempre ficava triste quando chorava. Triste porque não havia jeito, era doente: desde menino não conseguia piscar os olhos, e a luz lhe irritava mesmo por trás dos oculos escuros. Chorava discretamente o dia todo, e isso lhe agravava o temperamento forte. Só Luisa o aguentava, fruto de suas carências ou de um amor que só poderia ser presente divino. Para ela, a aparência não existia, para ele, era o mais importante.

Hugo ainda chorava, na cozinha, ao cortar as cebolas. Hugo ainda chorava ao tomar banho.

Luisa, desde nascida, era cega. Mas não era culpa de quem a fez, a culpa era de Deus. Não sabia e nunca soube apreciar o trabalho magnífico de Hitchcock. Encontrou Hugo numa biblioteca e de pronto, apaixonou-se. Frequentava as bibliotecas e livrarias porque adorava os livros. Comprava-os pela textura da capa, sentia através do dedo cada página. Entrelaçava-se com as histórias que os poros do papel contavam. Sentia a tinta. Havia lido Moby Dick, Dom Casmurro, Huckleberry Finn... seu preferido era um de Garcia Márquez. "A capa mais sedosa que já senti na vida". Apaixonou-se por Hugo porque era Garcia Márquez legítimo: Sua textura era diferente ao passo das lágrimas que caíam e molhavam suas bochechas e sua barba cheia.

Um dia Luisa abriu os olhos, como toda a manhã fazia. Só que dessa vez avistou Hugo. Avistou o quadril que não era dela, seu nariz diminuido. Olhou o vestido que não lhe pertencia. Luisa chorou porque a luz a irritava tanto quanto a deixava triste. Os livros perderam todo o significado. As texturas foram sumindo do rosto de hugo. Tudo que era palavra se desfez, em poucos segundos. E Hugo nunca mais a viu.

Hugo chorou.

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