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Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

sábado, 1 de maio de 2010

A guerra

(Fabiana joga a urna, com as cinzas da avó de Cláudio, da janela do décimo quinto andar do prédio.)

Cláudio:
Por que fizeste tal coisa?
Estás a delirar? Já deveria saber:
Me casei com uma louca varrida!
Completamente possessiva!
Concedi o meu domingo,
minha missa, meu futebol,
minha motocicleta, meu anzol,
minhas palavras, minhas cervejas,
minhas amigas, minhas certezas,
muito mais que meu tudo te dei!
Pra saber que me enganei!
Agora me privas do que restou de minha vó,
aquela santa, tão diferente de vossa mãe!
Jogou-a do décimo quinto andar...
Pra o que restou dela, não mais restar.

(Ouve-se um grito distante, e os dois parecem não se importar com aquilo, e continuam a discutir. Fabiana rasga a capa de um vinil do Elvis Presley, e lança o disco de encontro à parede, que se quebra em mil pedaços)

Fabiana:
Santa? Santarrona!
Maldita pecadora
era a vossa progenitora!
(Fabiana pega o disco "Abbey Road", dos Beatles. Num rápido movimento, Cláudio corre para se entrincheirar atrás do sofá novo.)
A tua família foi concebida
na prostituição! E você?
Te encontrei a vadiar pelo Grajaú!
(Nesse momento, Cláudio deixa a cabeça aparecer atrás do sofá, com a expressão raivosa)

Cláudio:
Vá tomar no...
(O barulho do vinil dos Beatles espatifando um vaso de porcelana abafou a última palavra dita por Cláudio. Nesse momento, Fabiana corre até a cozinha e pega um Pudim de Chocolate, e com a fôrma em punho, volta para a sala.)

Fabiana:
Olha cá, o pudim que te fiz!
Há duas semanas está na geladeira...
Não gostas de comer besteira?
Então, tome-as!
(Fabiana pega punhados de pudim e os lança aleatoriamente. Agora Cláudio está realmente bravo, e de sopetão vira o sofá de ponta a cabeça. Sua cara está vermelha. Ouve-se um som de sirene ao fundo.)

Cláudio:
Não te bato pois fui educado!
És uma mulher insolente!
Vadio é quem diz, pois você não trabalha,
fica em casa o dia todo,
vai a academia, malha,
volta pra casa e se deita no chão.
E não pense que não sei do Ricardão!
Pois aquelas gravatas que surgiram
no armário, não eram minhas!
Enquanto eu estou a trabalhar,
onde já se viu?
Ausento-me para te sustentar,
e tens a ingratidão de me trocar?
Desgraçada tu és,
Fez do meu amor castelo de areia,
na beira do mar.
Já se foram dez anos,
e só nos cinco primeiros
te pude aguentar!

Fabiana:
Te traí por que assim também o fizeste!
Achei que estava subentendido...
Tácito, implícito!
As várias que tens nas ruas,
conheço-as por nome e cor,
qualidade de cabelos e estilo,
e por muitos outros mais eu sei
das tais do teu harém.

(Na rua, uma senhorinha estava morta, com paramédicos a colocá-la na ambulância, e como a viatura obstruiu uma passagem, um motorista descuidado e alcoolizado bateu em outro carro. Fabiana e Cláudio ouvem o estrondo da batida e correm juntos até a janela, avistando a senhorinha, coberta com as cinzas da avó de Cláudio, e os paramédicos desnorteados.)

Assim terminou a batalha:
Cada um foi pro seu canto
Sem ter o que falar
Diminuiu-se à um diminuto pranto,
simultâneo.
Cláudio dormiu no sofá.

5 comentários:

Anônimo disse...

po... ninguem conversa coloquial... acho q soh em historias mesmo... ahuehauehae
Marconi

canela fina disse...

MUITO BOM... soa como uma mistura de cordel e "causo" (pela poesia) com sitcons de TV. Em voos mais altos poderia ser até o germe de um musical pra teatro. Já pensou que loucura? rs

Carol da Matta disse...

Daniel, eu tive a mesma "leitura" que o Filipe... lembrou-me o diálogo do musical de Gotad'água, de Chico Buarque, conhece?
Muito bom...

Tiago Duarte Dias disse...

Eu gostei, e realmente rola fazer um musical, pensa nisso.

Stefan Rotenberg disse...

Yeah, a forma dele me lembrou um texto teatral, de fato. Acho que sou o 4º a dizê-lo?
Eu gostei. Tem ritmo, tem sabor.