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Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Jorge e as mudanças imperceptíveis

Abrem-se as cortinas. Sim, isto faz parte daquele meu irremediável costume de começar histórias com períodos extremamente curtos e sem sentido aparente. Acho belo - aí vai outro período curto. E talvez eu goste disso porque creio que as nossas transições são feitas num período curto. Há quem diga que "não se torna isso do dia pra noite, não se faz aquilo instantâneamente", por causa disso, ou daquilo, ou daquilo outro - que é referencial dogmático. Pois eu digo que não: Todas as mudanças são feitas num período extremamente curto. Esse período se revela tão curto, que acaba por se disfarçar na corrente de mudanças, nos dando a impressão de que nada se faz do dia pra noite. Mas na verdade deixamos o passado para trás e ignoramos as consequências disto com a mesma facilidade que nos recusamos a mudar, por medo desses mesmos reflexos. Percebemos esse período curto quando moramos numa cidade voltada para o mar. Jorge mora numa cidade voltada para o mar. E como se não bastasse, se permite viver na avenida beira-mar.

Onde começa o mar? Onde termina a cidade?

Pois o mar está revolto em nossos eletro-eletrônicos. Trocamos de tevês e computadores e microondas muito rapidamente. A maresia invade a cidade, o mar invade o vazado dos prédios, enferrujando e deteriorando os nossos metais.
Abrem-se as cortinas e Jorge olha a avenida. Sinais, faixas, pessoas no calçadão, automóveis. Para ele explicar isso era fácil, pelo menos era o que pensava, ou não pensava, enquanto segurava a caneca de café que exalava uma fumaça fraca. "Ali começa o mar, na areia, horas mais em cima, horas mais embaixo, a maré dita seu começo como um general dita o posicionamento de suas tropas." Mas ele na verdade não podia explicar. Para ele, as mudanças da maré se exibiam na sua lentidão. Ele dizia que sim, e eu já me nego a compactuar com Jorge: Essas mudanças são feitas num período curto. Num milésimo de segundo, no exato momento, a maré tinha ficado imperceptivelmente mais alta. Mas quem poderá dizer que não está mais alta? Quem poderá dizer que não existe Deus? Creio eu que Ele tenha iluminado Jorge no momento exato. Tentou abrir a janela de metal, não conseguiu. Ali estava o mar, tinha se infiltrado em sua casa, no enferrujado de sua janela e em todos os seus eletro-eletrônicos. Ele percebeu que pisava no molhado metafísico do mar. Jorge sentiu-se alegre, a água estava fria, subiu-lhe um calafrio, um nervoso na espinha dorsal. Precisava sair. O carro dele não pegava. Talvez fosse o frio incomum que fazia naqueles dias, talvez não, nunca entendi muito bem os automóveis. Ele precisava de um carro novo. Sua vida também não pegava, precisava de uma nova, mas infelizmente, vida só se pode ter uma.

Jorge andava abstraido pelo calçadão da praia. Estava mergulhado no mar que descobrira há pouco. Encontrou um parque, com as barras do portão enferrujadas. Estava ali, era o sinal do mar, de que ele existia ali. Deitou-se na gangorra. Não via o céu direito, os prédios lhe davam esta visão defasada, irreal, parcial, do céu nublado que reinava. Era a cidade. E a cidade Jorge? Com o que lhe parece a cidade? A visão íntima dele era que o mar não se encaixava na cidade. Nunca havia percebido que morava à beira-mar. Não percebido óticamente, mas percebido com a alma, com a idéia, a razão. Para ele, cidade e mar não poderiam coexistir em paz: Ou o mar destruía a cidade, ou a cidade ao mar. Nunca havia percebido que o mar era o que havia erigido o seu prédio. Embora vivesse rodeado de construções - as constantes mudanças! - só atentava para a estaticidade do seu edifício. A cidade é como o mar, Jorge. É como a maré. Não se pode dizer onde começa, onde termina. A cidade envolve os seus tentáculos onde quiser. Mas, e no mar? Lá está a plataforma de petróleo e os navios cargueiros. Quem poderá dizer que a cidade não existe lá? Jorge olhava a plataforma. Era um prédio como os outros. Os prédios em construção - constantes mudanças! - o cinema desativado, os bares, o metrô, a cidade mudava numa rapidez novamente imperceptível. Era o curto período da hora útil, que fazia a cidade pender para um lado, a maré descer, e a hora inútil subia o mar que a plataforma enferrujava. Jorge sorriu, pisava agora no concreto. Mas era um concreto abstrato. Quem dera todos os dias as cortinas abrissem como hoje se abriram.

4 comentários:

Carol da Matta disse...

Ótimo texto Daniel! Bom sinal: você tem talento tanto para poesia quanto para prosa.

E eu concordo com você, na verdade, com o narrador. Acho que as mudanças, as grandes, acontecem de uma hora para outra. No segundo que deixou de ser o que era.

Outra verdade, para mim, do seu texto é a de que quem dera pudéssemos abrir as cortinas da vida todos os dias e realmente enxergar.

Carol da Matta disse...

Daniel, olha esse link: http://oglobo.globo.com/megazine/mat/2010/08/16/inscricoes-abertas-ate-dia-24-de-agosto-para-nova-turma-do-conselho-jovem-da-megazine-917401641.asp

É para participar como "jornalista amador" de um caderno (O caderno Megazine) do Globo. Achei que você iria se interessar.

Beijos!

mari_aylmer disse...

e agora, Jorge?

as mudanças ocorrem mesmo num segundo.. eu que o diga.

=]
bjin

mari_aylmer disse...

acho que vc vai gostar desse texto perturbado que eu escrevi..
http://mari-aylmer.blogspot.com/2010/08/segundo-loucura.html

se nao gostar, nao comenta.. hahhaha

queijo