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Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Do décimo sétimo andar (Continuação da continuação; Parte IV)

E quando os dias iam passar, resolvi me livrar da caixa de sapato que continha as fotos. Eram milhões de fotos. Joguei-as do alto do prédio. Era como um suicídio, mas junto puxava Ela e alguns amigos que agora me falham à memória. Talvez eu tenha chorado, talvez tenha assassinado algumas lágrimas que se perderam no meio do caminho, do 17° ao chão. No final, preservei apenas a caixa, onde pus um sapato social que não usava há tempos. Agora a caixa exercia a sua devida função, poderia voltar a acumular poeira no alto do armário.

Dormi.

Na verdade, na verdade, eu não me lembro muito bem no que sonhei. Mas creio que o raciocínio induzido é capaz de preencher as lacunas que os sonhos deixam. É como um divertido jogo de cruzadas. Mas preenchendo foi que percebi que se formava uma imagem perfeitamente igual à imagem do sonho. Era esguia e tinha olhos atentos. Um pouco arregalados, talvez, mas nem tanto. Eram tão delicados quanto os soslaios frequentes que lançava. Definitivamente eram olhos belos, curiosos, soslaiantes. Não, não eram aqueles olhos que mal se percebe onde começam, onde terminam, não, via-se com nitidez a parte branca inundando o castanho escuro da íris. Seu nariz era meticulosamente empinado, fino e gracioso. Sua boca era delicada como a sua voz, leve, tranquila, desprovida de qualquer autoridade. Os cabelos eram estranhamente um misto escuro de liso com pontas onduladas, o que combinava com o castanho de seus olhos. O corpo era representação da face. Bonito e comedido. Eu a idealizava assim. Talvez ela nem fosse assim, ou fosse, nos meus sonhos. Romantismo idiota, sempre acordando as pessoas felizes. Se existia alguém no mundo que não queria se apaixonar, esse alguém era eu. E ponto. Estava feito: Uma mulher de um sonho, que nunca havia visto. Pelo menos ela não me decepcionaria.

Foi no passar desse dia, ao acordar, que percebi que não comera nada nos últimos três dias. Senti uma fome indiferente, não me apertava a fome. As prateleiras noticiavam que não tinha feito compras do mês, muito menos pago as contas de luz e telefone, se é que tinha telefone nesses dias, se não já o tinha varado pela janela. Achei um pacote de alguma coisa. Comi. Eu definitivamente não queria pagar minhas contas. Não queria pagar às companhias e nem queria pagas as contas que tenho com todos os homens. Senti-me no fundo de um poço. Olhei pela janela. Senti-me no alto do mundo. Talvez quando pensamos que estamos construindo a nós mesmos, quando estamos a nos edificar, é aí que encontramos o fundo do poço, e quando nos percebemos na miséria, é quando nos construímos mais rapidamente. Estava agora acima de todos os homens. No 17°, era acima de todos eles, insignificantes. Como se eu fosse rei do mundo, mas ninguém soubesse disso, como a fantasia do pequeno jovem, que namora sua amiga sem que ela saiba.

Eu definitivamente era o rei.

Mandava neles! Sim! Mandava em todos! Mandava sinais abrirem, mandava carros pararem! Mandava passaros voarem e nuvens se moverem! - Homens, respirem agora! Isto é uma ordem! A submissão é algo lindo quando visto de cima para baixo. E nem déspota eu era. Absoluto sim, mas amoroso. Nesse momento um sinal abriu sem que mandasse. Houve a colisão. - Merda! Eu mandei ir? Eu mandei abrir esta merda de semáforo? Não mandei! Bem feito! Ele morreu. Eu acho que deveria ter morrido mesmo. Desci do trono e deixei tudo correr nos conformes. Mandei a luz ligar. Ela não ligou. Tevê, ligue! Não ligou. Fogão, esquente! Nada. Mas não me irritei, acho que tem de ser assim, é uma escolha a se fazer: Se mando no mundo, não posso mandar também na minha própria casa.

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