Minha foto
Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

domingo, 3 de outubro de 2010

Cristiane

Há quem diga que a verdade é como vemos as coisas. Talvez realmente seja como soa. Seríamos então capazes de mostrar um hematoma feito por uma visão? Pois eu digo que sim: afinal, após um milhão de anos convencionando, sentimos dores no peito quando estamos tristes. O coração sente algo? Claro que não, a mente guarda todos os nossos sentimentos, tudo o que há de invisível no nosso corpo, as energias. Cristiane talvez não entendesse de metafísica, muito menos de corpo, mas sentia as dores no peito. Como todos nós. Era excelente em trabalhos domésticos. Realmente se esmerava e como se não parecesse verdade, adorava trabalhar dessa forma. Cantava músicas da jovem guarda enquanto lavava as louças ou varria a sala. Era nova na casa da jovem Mariana, que, de tempos em tempos, gostava de ouvir as canções da empregada enquanto trabalhava em seu computador, ou até parava as vezes para conversar sobre coisas rápidas e informais com a moça. Chegava as seis e meia da manhã, pontualmente. Mariana as vezes gostava de olhar o relógio as seis e vinte nove, e no exato momento em que viravam as seis e meia, ouvir o pedaço mais famoso da peça Für Elise de Ludwig Van em lá menor, anunciando a chegada de Cristiane. Saía as três e meia, também pontualmente. Era eficiente, em dois meses de trabalho nunca havia faltado, muito menos se atrasado - chegando ou saindo.

Em suas rápidas conversas com a moça, Mariana descobriu que tinha quatro filhos: Dois com um homem que nunca soube realmente onde viveu, qual seu nome, sua aparência, e outros dois com o homem que agora vivia em sua pequena casa, um rapaz de índole duvidável. Porém, não havia se divorciado, diziam os rumores que ela havia fugido do primeiro homem. Lá no fundo, isso realmente intrigava Mariana. Porque fugira? Por apanhar? Por brigar? Ou simplesmente pelo esmorecer de um amor que para humanos, deveria ser eterno? Não se sabe.

Então, quando naquela tarde ouviu-se o estalar do portão fechando, e Cristiane dobrou a esquina, Mariana pôs-se a pensar em tudo aquilo, na vida de Cristiane. Mais tarde, toca o telefone. Era o marido dela. Onde ela está meu deus ondeseraqueelafoiblablablablablabla. Mariana disse apenas que não sabia de nada. Ele repetiu a ligação duas vezes. E Mariana repetiu a resposta.

No outro dia, Mariana olhou o relógio: Seis e vinte nove. E ao badalar desimportante das seis e meia, não se ouviu Ludwig Van. Mariana esperou mais um pouco, mesmo que já soubesse do pior. Cristiane não chegaria, muito menos voltaria. Ela fugiu novamente. Fugiu para ter mais dois filhos, fugiu para trabalhar em outra casa, para intrigar outras marianas.

Mariana foi ao seu pai. Pai onde está Cristiane? Ele nunca tomou conhecimento da empregada. Sua mãe também nunca ouvira falar de Cristiane, muito menos seus irmãos, não sabiam das fugas, das chegadas e saídas, das canções da Jovem Guarda... Nem a campainha tocava Ludwig Van Beethoven! Mas Cristiane era tão vívida, tão intensa em suas cantorias e histórias! E agora? Cristiane havia trabalhado ali. Era verdade. Pelo menos, há quem diga que a verdade é como vemos as coisas.

3 comentários:

Carol da Matta disse...

Rapaz, adorei. A retomada do início no fim. As marianas, cristianes, verdades: metafísica. Mandou muito bem...

mari_aylmer disse...

=)
muito bom!
etratou mt bem.. parece história de crônica-bem-escrita mesmo!
Não imaginava que a mariana fosse entrar no texto.. Surpresa boa! hahah
enfim, pra variar, ficou show de bola!
bjs

Bernardo Acácio disse...

Gosto dos seus textos! Cada vez mais!