Minha foto
Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Pétreo

Os olhos são cegos, Jane. E eu penso que, se cada palavra que te digo aqui é imagem pura e simples, que você enxerga através do conjunto de frequências audíveis ou de letras, sílabas unidas, é aí que está puramente a sua visão e a concretude das coisas. Mas ao mesmo tempo é limitar tudo aos seus respectivos nomes. Sendo assim, os nomes são crimes capitais, limitações ridículas. É como se o nome fosse o tijolo da casa, e o barro do tijolo, e a terra do barro... como se o nome fosse o próprio mundo. Ar, ar, ar, ar, som, som, som, som...
Mas o que é o que pra você, Jane? O que é um nome? Sentimentos são tão particulares quanto os significados. Quando lhe digo algo, que é algo pra mim, digo-lhe não o que quero dizer, mas o que de fato você pôde entender. Como quando você sente algo por alguém. Amor, ódio, compaixão, inércia...todas essas coisas não deveriam de ter nome, porque são infinitas. E daí você encontra uma palavra que te abre o mundo, que te revira os olhos e faz você fechá-los e pensar em tudo o que ela pode te ocasionar. Uma infinitude. Uma abstração sem final! Uma coisa que não tem nome. Uma palavra que não tem nome.

- Olá, meu nome é Jane. E esse é meu cão-guia, Mercedes, é uma cadela. Confuso, não é? É cadela, mas chamam de cão-guia. Parece que é macho.
- Ah, português é uma doideira só, Ja... Jane, né?
- Isso. E você é...
- Maria, Maria. Atendo pelo nome de Cota, também, é apelido.
- Tudo certinho, Cota. É o seguinte: Como você pode perceber, eu não enxergo, sou cega de berço. Preciso de ajuda aqui em casa com cozinha, roupa e faxina, além de ter que confiar em você, porque hoje em dia é um tal de empregada querendo roubar patrão... se até quando enxerga, rouba, imagine só eu, que sou ceguinha, ceguinha? Passo aperto.
- Nada, nada, dona Jane. Sou da igreja universal.
- Jane, apenas. Não sou sua dona!
- É só jeito de dizer, dona... quer dizer, Jane.

Mercedes olhava tudo, impassível. Parecia até que entendia tudo. E não é que entende? Quem nunca disse ao seu cachorro: "Deita, late, finge de morto..."? E, por incrível que pareça, ele entende, e obedece, por associar um movimento a ordem. E se ensinássemos o cão a deitar, sob o comando "late"? Ele obedeceria errado? E se dissessemos ao cego que o azul é verde, e o verde é o azul... se provássemos que a nota de cinco era de dez, e a de cem era de dois... Os cegos são fracos porque não podem ver.

ou não.

Ou são mais fortes que todos nós, mais aptos a entender toda essa abstração que gira em torno da palavra. O que é o formato da letra, o que é uma cor e uma fonte? Amor é preto, ódio é preto... o Azul, o Verde, até Mercedes, a cadela, o cão-guia, é preto. Preto que é preto também, e é uma das poucas descobertas na vida de um cego, mas a melhor e mais deliciosa de todas elas: Descobrir que a palavra é um buraco negro, profundo, mas assim dito, preto.

2 comentários:

Carol da Matta disse...

Você tem toda razão.
=)

luzevela disse...

o cego é um semi-ótico, tautologicamente.