Minha foto
Nem sempre sou quem escrevo, mas sempre sou quem escreve.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

O abatjour

O chão era de taco. Da posição percebida, as madeiras estavam dispostas na horizontal, cada um no seu tom de marrom único, brilhando por causa do verniz. Na fresta pequena que havia entre as ripas, poeirinhas e sujeira, imperceptível a olho nu de homem, mas a imundícia maior, para uma mulher. A madeira corria até o rodapé, e do rodapé se erguiam quatro paredes brancas. O cômodo era de sete por cinco. Na parede norte, estava encostado um vaso grande de planta, bem cuidada, com folhas grandes e, para combinar com o chão, envernizadas, da forma dos vegetais. Era uma vida pulsante que estava disposta embaixo de um quadro com a fotografia preta e branca de Gary Rossington, que empunhava uma guitarra Les Paul e usava uma camisa xadrez, possivelmente vermelha no original. A sua cara parecia gorda e as costeletas até o meio das bochechas ajudava nessa idéia. Ele não parecia estar no palco: Parecia estar num descampado grande, numa liberdade só, porque os cabelos dele - longos - esvoaçavam com o vento. A nota na guitarra era um arpejo de lá maior, que provavelmente distorcido, soava divino. A sua boca entreaberta deixava isso bastante claro. A parede sul ostentava a porta enquadrada no lado direito. No lado esquerdo, estava encostada a cômoda, branca, com duas prateleiras e três gavetas. Nas prateleiras, grandes volumes figuravam e mostravam coerência nas leituras, porém uma curiosidade infinita de descobertas. Havia Sartre, Camus, Garcia Marquez, Rilke, Herman Hesse. Havia Graciliano, Machado de Assis, José de Alencar...Nietzsche, Schopenhauer, Platão, e muitos e muitos outros livros, a maioria velhos, com as páginas já amareladas. Nas gavetas, haviam folhas velhas, de um passado remoto. Haviam fotos, com sorrisos que não eram mais amigos, pastas que não eram mais úteis. Havia uma Bíblia grande, comentada, com uma dedicatória paterna. Em cima da cômoda, uma televisão e um vídeo-cassete, uma carteira de couro preto, já esgarçado, e um celular velho. Na parede oeste, centenas de vinis encostados, com cara de coleção. Tinham todos, mas todos de Chico Buarque. John Lennon, Milton Nascimento, Belchior e o favorito, de 67. Gil. Havia, num descanso, uma Telecaster, com as cordas enferrujadas, todas, mas sobretudo as mais agudas. No escudo da guitarra estava escrito "Amor". No lado leste era uma cama. E só. Um colchão já gasto, um lençol desbotado, e um desses travesseiros do tamanho de uma folha de papel. E no centro do quarto, um rapaz, olhando e vendo a sua cara, no chão de taco: As sombrancelhas bagunçadas, a barba mal feita, um nariz espalhafatoso. Os olhos haviam lágrimas, talvez. Talvez seria apenas o chão de taco, que lhe dava essa impressão. Ele era um abatjour.

Nenhum comentário: